Não me viste, mas eu estava ali. Precisava de saber se estavas bem, se tinhas sobrevivido depois de toda aquela tragédia. Foi terrível. Consideraram-te culpada, mas tu não tiveste culpa de nada. Eu tive a culpa, e sei disso.
Segui-te até casa. Não marcava o chão com passos. Deslizava suavemente pela paisagem deixando apenas a memória da minha presença. Não se via qualquer rasto, no entanto aposto que não era totalmente impossível saber que eu passara por ali. Alguma marca eu teria de deixar.
Estou desiludida comigo. Vim apenas para saber se estavas bem, mas acabei por te fazer sofrer ainda mais que antigamente. Acabei por andar a seguir-te, dar cabo do teu carro, confundir-te com o telefone. Estou a piorar a situação, a fazer-te sofrer, e serei castigada por isso. Devia ter-te deixado em paz, mas a minha obsessão por ti tornou-se tão forte que não te deixaria sozinha depois de teres visto um... eu. Depois de me teres visto a mim.
Entraste em casa, a pé. Por minha causa, o teu carro tivera um final trágico e eu sentia-me verdadeiramente culpada.
Colquei-me à janela, olhando lá para dentro. Queria apenas observar-te, protejer-te, retribruir o que fizeras por mim. Apenas isso.
O teu pai aproximou-se. Lembro-me tão bem do teu pai! Costumava levar-nos a passear, mas sei que o fazia apenas para conseguir subir na carreira. O teu pai detestava o meu por ser seu chefe, mas tinha de cair nas suas graças. Porque é que há tanta maldade humana?
- O carro? - perguntou ele.
Tremi ao prever o que responderias. Senti o teu sofrimento em mim. Senti-te em mim, e isso não era bom. Acho que sentiste o mesmo, por isso te viraste para a janela de repente, e por isso eu desapareci em segundos e voltei a aparecer depois.
- O que é que há na janela? - perguntou, de novo, o teu pai.
Ficaste horrorizada com o "o que há", eu reparei.
- Não, não... nada. Não é nada.
- O que foi, Victoria?
- Só uma sombra. Uma... simples sombra.
E a conversa voltou ao tema principal.
- O carro?
Hesitaste. Qualquer pessoa hesitaria na tua situação.
- O carro, não está aqui.
- Não está?
- Foi-se.
Qualquer pessoa se riria, mas eu não tinha vontade nenhuma de rir. Apenas me apetecia chorar e trazer o carro de volta, mas as minhas capacidades não chegavam para isso.
- Tiveste um acidente!
- Sim.
- Como?
- O carro caiu do monte abaixo. - disseste, com os olhos em lágrimas.
- COMO?
- Pai, aconteceu. Perdi o controlo ao carro. Por sorte... ah... saltei... pela mala.
Estavas a esconder a parte da "rapariga estranha", claro. Toda a gente esconderia. Não sei porque o escondes. Vim para te ver, apenas. Não queria ser um incómodo. No entanto, sei que o fui. Desculpa.
- Mas tu és parva?! Aquele carro custou-me anos a conseguir! Sabes o que tive de trabalhar para conseguir um carro como aquele para tu... lhe perderes o controlo e o deixares cair do monte abaixo!? Não vales o esforço, Victoria, não vales o esforço!
Começaste a chorar. E eu também. Mas eu podia chorar as vezes que quisesse. As minhas lágrimas desapareciam quando caíam no chão. Nunca entendi porquê. Todos temos o direito de deixar o nosso rasto na Terra, que importa se somos diferentes?
De repente, o voltaste a olhar para a janela. Desapareci.
- Pai, depois falamos, pode ser?
- Tu não mereces sequer a Universidade em que andas, vais ver o que te vai acontecer! Espera aí que eu venho já para... - o teu pai ameaçou algo mais que não consegui ouvir. Fechou a porta de rompante e tudo voltou a ser como fora no monte. Tu, eu, o silêncio.
Voltei a aparecer, e viste-me.
- Eh! - gritaste.
Mas desapareci.
Encostaste-te à janela, olhando para dentro da casa.
Aí eu apareci.
Olhei para ti. Estavas bem, disso eu sabia. Mas agora que fizera tudo mal, não te queria deixar.
Inconscientemente, murmurei:
- Desculpa tudo isto.
Viraste-te de rompante e eu assustei-me. As minhas mãos foram contra o vidro. Olhaste para mim aterrorizada. Desapareci imediatamente, fugi.
Não sei o que aconteceu a seguir. Deves ter ficado em pâncio. Oh, fiz tudo mal!
Se não tivesses olhado para o vidro naquele momento, eu não o teria marcado com as minhas mãos.
Ficaram lá, no vidro, transparentes e silenciosas, ténues e misteriosas, inapagáveis. Ficaram, ali, duas marcas da minha presença, marcas que verias todos os dias.
CONTINUA...
2 comentários:
A história já está a ganhar formas. As formas que eu tanto gosto e que me impedem de andar à deriva :)
É engraçado, a Isabella? A figura que segue a Victoria, seja o que ela for, quase que a descreves como uma humana. Aliás, descreves mesmo a nível emocional. Também ela sofre, receia, se preocupa, gosta. Acho que posso concluir que não achas que estes "não humanos" sejam muito diferentes dos humanos. Por um lado é reconfortante, saber que há uma certa igualdade entre nós e "eles", e devido ao facto de nos ser possível entendê-los, porque pensámos quase da mesma forma :)
foi isto que eu entendi Sofia, espero que corresponda às tuas ideias ahahaha
beijinhos,
df
;) Sim, e vai ganhar ainda mais ;)
Sim, a história esta a ser narrada por partes, cada uma narra um bocado. E sim, acredito. Acredito que "eles" não são tão diferentes de nós, pensam como nós, sentem, choram... é o que tu dizes, sem mais palavras. É exactamente isso que penso.
Beijinhos
sofia (e corresponde mesmo a 100% xD)
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