sábado, 4 de junho de 2011

O lugar onde antes estivera eu

O lugar onde antes estivera eu
Ainda agora procuro uma explicação para aquele dia. Ainda agora paro e reflicto, mas nada adianta. Quem era aquela rapariga? Quem era Verónica? E, mais importante, o que fazia ela, a olhar para mim daquela maneira?
Lembro-me de estar a andar ao pé de um rio, com o vento a bater-me na cara. De repente, as águas agitaram-se, o vento mudou de direcção, e uma árvore pequena até caiu. Abaixei-me e coloquei as mãos a tapar a cabeça, fechando os olhos. Senti uma presença estranha, mas ao mesmo tempo humana. Levantei os olhos e vi uma rapariga, da mesma idade do que eu, de cabelos escuros e lisos. Os seus olhos eram de um verde que eu nunca tinha visto. Da mesma cor que os meus, mas ainda mais estranhos. Tive uma sensação de conforto, de dúvida. Lembrei-me de muitas coisas estranhas, de pessoas que nunca tinha visto. Lembrei-me de um cão, preto, com uma coleira vermelha, a correr na minha direcção. Esse cão não tinha cabeça e coxeava. Lembrei-me perfeitamente dele, mas nunca o tinha visto. E não era um sonho. Era real, não estava a imaginar, estava mesmo a lembrar-me. A rapariga não tinha nada que a identificasse, excepto uma pulseira com o nome “Verónica”. Isso embateu-me fortemente, eu lembrava-me daquele nome, mas não conhecia ninguém com ele, como se fosse o meu. E depois, lembrei-me de uma coisa drasticamente clara, comecei a lembrar-me de morrer. Mas como, se estava viva? Olhei para o rio e vi uma imagem indefinida, uma criança a cair ao rio, gritando por ajuda. Uma criança a morrer. Era uma rapariga, uma rapariga igual à que eu via à minha frente.
- Quem és tu? – perguntei, embora a resposta me parecesse demasiado assustadora.
- Tu. – disse ela.
Fiquei muito incomodada com aquilo. Comecei a lembrar-me de mais coisas estranhas, incluindo ver-me ao espelho e pentear o cabelo escuro e liso que tivera.
As histórias não eram mitos, os contos não eram mentira. Não percebia como aquilo acontecera, mas Verónica não era humana. Não era humana e não tinha espírito, pois o seu espírito era o meu.
Respirei fundo, e ela fechou os olhos. Aquilo estava a ser difícil para mim, mas ela parecia tão confusa quanto eu.
- Quem és tu? – voltei a perguntar.
Verónica desapareceu. Comecei a correr ao pé do rio, a procurá-la atrás das árvores. Encontrei-a várias vezes, mas ela voltava sempre a desaparecer. Descontrolei-me e comecei a ter raiva. Queria saber quem ela era, mas nem sequer conseguia tocar-lhe, e isso irritava-me.
Falhou-me um pé, desequilibrei-me para o rio. De imediato a corrente tentou levar-me, e eu debatia-me agarrando-me a uma pedra bicuda que havia na margem.
Verónica assistia, levando com o vento na cara.
Olhei para ela com a intenção de que ela me ajudasse, mas aquele parecia o fim que Verónica moldara para mim. Agora percebia tudo, mas não ia deixar que isso acontecesse, nem que ela me perseguisse a vida inteira. Gritei, e ela nem se mexeu. Era mesmo aquilo. Ela queria matar-me, talvez por raiva, talvez por vontade de ter tudo de volta, talvez me considerasse a mais. Mas era impossível. Ela não podia voltar. Eu não podia voltar. Era a vez da parte de mim actual viver. O passado já passara, não havia nada a fazer. Agora, o corpo da rapariga loira tinha direito à vida.
Agarrei-me com força à pedra e saltei para a margem. O rio era muito estreito, mas era fundo. Mal me pus de pé olhei para ela com raiva. Estava à espera que fugisse, mas ela manteve-se quieta no seu lugar. Aproximei-me, nada fez. Parecia uma estátua, excessivamente confusa.
- Quem és tu? – perguntei outra vez.
Desta vez ela não fez nada. É certo que não respondeu, mas também não fugiu. Olhou para mim, e os nossos olhares revelaram-se iguais. Pensámos nas mesmas coisas, e sentimos uma forte ligação.
Fitei-a corajosamente, pensei em tudo o que sentira, e formulei a minha questão, a pergunta que eu tanto temia fazer. Mas fiz:
- Verónica, tu és a minha vida passada, não és? Morreste, no rio, e o teu espírito habitou em mim. Somos a mesma pessoa, não somos?
- Sim. – respondeu ela, e, incomodada, desvaneceu-se.
O rasto dela apenas ficara na minha memória. Tudo o que restava dela era eu. E eu era ela. Simplesmente.

Obrigada. Foi com estas palavras, que construiram este texto, que eu ganhei o Concurso de Literatura. Obrigada.

10 comentários:

Joan disse...

Parabéns. Mais uma vez. Como previ, foi bem merecido...

daniela fernandes disse...

"Tive uma sensação de conforto, de dúvida." As pessoas ditas "normais", que não ultrapassam as linhas da normalidade, ou então aquelas que são demasiado cobardes não se sentem confortáveis com a dúvida!!
És diferente, e curiosa num bom sentido :-)
Acrescento ainda, e sem novidade alguma, que o texto está mesmo bom. Escreves bem. Prendeste-me até à última linha... "Tudo o que restava dela era eu. Eu era ela."
Parabéns :D

IM disse...

É verdade...é um texto muito giro, mas eu sou terrivelmente suspeita...ehehehehe...

Sandra disse...

Olá Sofia. Eu sou a Sandra, tua seguidora, como já deves ter reparado. Não sei se te recordas de mim, Troquei algumas palavras contigo na apresentação do Correntes, na FNAC.
Gostava de te dizer que gosto muito de ler o que escreves. Acho que escreves muito bem para a tua tenra idade (não que eu seja muito mais velha!!!) e que não deves deixar de escrever, porque tens umas ideias muito boas, que com o tempo só poderão melhorar. Por isso, continua!
Apesar de não comentar muito, eu vou passando por aqui...
Em relação a este texto, gostei muito, acho que está muito bem conseguido e atemática é boa. ;-)

Parabéns. Um beijinho.
Sandra (Statler)

common courtesy disse...

Obrigada Joan...
Inner Silence

common courtesy disse...

É mesmo verdade. A personagem principal deste texto, a Sofia, já sentia há muito tempo coisas estranhas que não descrevia. Isso não é contado, mas ela foi para o pé do rio por puro instinto, porque precisava de reflectir sobre algo que ela não sabia. E era óbivo que ela se sentia confortável com a dúvida, na verdade,estava a confrontar-se com ela própria, a Verónica, a vida passada dela. Não há ninguém com quem nos sintamos tão à vontade com nós próprios, embora muitas vezes seja mais fácil entender os outros do que nós. Mas para pensar algo nós próprios somos os melhores. E a Verónica era ela...
Obrigada... mas há-de ser verdade se todos dizem que sou diferente... Tenho de me entender a mim própria! HE HE HE!É, mas na brincadeira, é difícil entender-mo-nos! Por vezes dizemos e fazemos coisas em que pensamos a vida toda as a resposta nunca a encontramos.Obrigada por dizeres que te "prendi". Gosto desses textos. Gosto de lê-los. E escrevê-los.
Obrigada Daniela,
Comentário realmente fantástico
E ESCREVES BEM!!!!!!!
BJS
Inner Silence

common courtesy disse...

E lá estás tu com os suspeitos...
O TEXTO É UNICAMENTE MEU.
Esse teu desejo de vitória a dobrar...
Também ganhaste o teu prémio...
Não queiras o meu...
Inner Silence

PS: Tou a brincar... :D

common courtesy disse...

Obrigada Sandra... claro que já reparei... se vejo reencarnações também vejo quadradinhos com fotos e seguidores!! He, he, he!!!!
Obrigada, muito obrigada mesmo, por tudo. E obrigada é uma palavra tão pequena... mas quando se está à rasca... diz-se obrigada.
Não... estou a brincar.
Obrigada mesmo por tudo o que disseste.
Bj
Inner Silence

daniela fernandes disse...

:D
Também gosto deste teu tipo de textos.. Não tens só veia para a poesia! Consegues ser igualmente fantástica nestes textos... Não deixando de lado os segundos sentidos, segundas intrepretações... Acabamos de ler a última linha e ficámos ali a imaginar a cena e a pensar no que te levou a escrever aquilo ...

Sim, sim! É, sem dúvida, bem mais fácil entender os outros ou como já alguém disse "Os problemas dos outos resolvem-se bem! Já os nossos..."
Mesmo que os outros sejam muito complicados, tenham muitos defeitos ou coisa má... who cares? são sempre "os outros". Conseguimos lidar bem com isso.
Agora, connosco? As coisas transfiguram-se... Não podemos fugir daquilo que somos! Temos de conviver realmente connosco e muitas vezes temos medo de nos desiludir com o nosso ser.
Só podemos lidar verdadeiramente connosco, e nem todos têm a capacidade para o fazerem.

Obrigada princesa, é sempre um gosto falar ctg :-)
beijinhos,
daniela fernandes

common courtesy disse...

É verdade... "nós" somos a palavra mais complicada que existe.
E quanto ao texto por acaso também e acontece isso, quando começo a escrever não me apetece parar, e quando paro sinto a falta do texto. Mas estava na altura. Na altura de parar.
E fico assim um pouco a olhar para o Microsoft Word sem ler nada, com as letras todas trocadas, apenas a imaginar indefinidamente a cena. E depois fecho o documento.
Fico muito contente por saber que gostas tanto dos meus textos! Obrigada, a sério!!!´
Também gosto muito do teu blog :) :) :)(e de falar contigo)
beijinhos
Sofia